quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Diabetes Tipo 1 e Doença Celíaca

 Dra.Celeste Elvira Viggiano
Nutricionista Clínica
Membro do Departamento de Nutrição e de Gestação Diabética da SBD 2008/2009
O que nos leva a discutir a associação entre diabetes melito tipo 1 (DM1) e doença celíaca (DC) é a visão limitada que temos desta associação. Quantos dos nossos pacientes portadores de DM1 com controle instável e com hipoglicemias recorrentes, podem apresentar esta associação sem que tenham sido diagnosticados, já que a maioria dos pacientes diabéticos apresenta a forma subclínica ou silenciosa da DC e apenas cerca de 10% são identificados pela sintomatologia clássica.
O artigo que comentaremos é uma revisão da literatura sobre as bases genéticas, imunológicas e ambientais da associação entre doença celíaca e diabetes melito tipo 1, de autoria de Araújo J e Silva GAP, intitulado “Doença celíaca e diabetes melito tipo 1: explorando as causas dessa associação”, publicado pela Revista Paulista de Pediatria 2006; 24(3):262-9. A revisão foi realizada a partir das bases de dados do Medline, Pubmed, Lilacs e SciELO, com publicações do período de abril de 1964 a janeiro de 2006, com os descritores diabetes melito e doença celíaca.
Segundo os autores a base genética desta associação é de que ambas compartilham mecanismo genético comum no sistema HLA. Alguns estudos demonstraram que anticorpos relacionados à DM1 podem estar presentes em 7-25% dos pacientes com DC, porém ainda não se sabe se tais anticorpos são preditivos do desenvolvimento de DM1 em pacientes celíacos ou somente indicativos de distúrbio imunológico generalizado.  Há evidências de que, no desenvolvimento da auto-imunidade da DM1, a falha de adquirir tolerância a auto-antígenos possa vir do intestino. Parece que o aumento da permeabilidade intestinal em pacientes celíacos não-tratados predispõe a outras doenças por facilitar que antígenos externos adicionais, como proteínas alimentares, produtos derivados de bactérias e endotoxinas, penetrem a lâmina própria do intestino e levem à ativação do fenômeno auto-imune.  Alguns autores especulam que a DC ocorre antes da DM1 e que a mucosa intestinal anormal intensifica a absorção de antígenos externos, induzindo uma resposta imune em pacientes geneticamente predispostos à DM1. Um estudo demonstrou que, em 11 pacientes com DC não-tratada e com pelo menos um anticorpo relacionado ao DM1, houve desaparecimento completo desses anticorpos após 12 meses de dieta livre de glúten. Para que ocorra o desencadeamento da reação imunológica, é necessária, além da suscetibilidade genética, a presença de um fator ambiental. O principal fator ambiental envolvido na gênese da DC é o glúten. As proteínas deletérias são a gliadina do trigo, hordeína da cevada, secalina do centeio e, possivelmente, a avidina presente na aveia.
É também exposta a epidemiologia desta associação, sendo mais comumente observada na Argélia (16,4%), Líbia (10,3%) e Dinamarca (10,4%) e menos na Alemanha (0,97% a 1,7%) e Áustria (1,5%). No Brasil há poucos dados sobre a prevalência dessa associação. Em Pernambuco, uma pesquisa que envolveu um pequeno grupo de crianças e adolescentes diabéticos encontrou elevada soro-prevalência da DC, em cerca de 21% dos pacientes com anticorpos positivos. Em São Paulo, um estudo encontrou soro-prevalência de 8,7%, confirmando-se alterações histológicas em 4,8% das crianças e adolescentes diabéticos.
Os autores questionam a validade de triar e tratar o binômio DM/DC, considerando os achados na literatura. Descrevem que o diagnóstico da DC pode preceder o da DM1, mas em cerca de 90% dos casos a diabetes é diagnosticada primeiro e a DC meses ou anos após o início da DM1. A maioria dos pacientes diabéticos apresenta a forma subclínica ou silenciosa da DC e apenas cerca de 10% são identificados pela sintomatologia clássica, e que pacientes com ambas as condições apresentam idade mais jovem no diagnóstico da DM1.
É variável o número de pacientes diabéticos com sinais e sintomas sugestivos de DC nos diversos estudos, o que provavelmente reflete a freqüência com que se pensa nessa associação e, embora não se tenha dúvida sobre a maior prevalência de DC em pacientes com DM1, ainda há controvérsias se um programa de triagem deva ser instituído de forma rotineira. Entretanto, os autores alertam que ainda não é conhecido o risco de doenças malignas nas formas subclínica e silenciosa e que pacientes assintomáticos podem desenvolver crescimento deficiente, atraso puberal, hipoglicemias freqüentes e controle glicêmico inadequado.
Há um questionamento também acerca da dieta. Segundo a literatura consultada, o impacto da dieta sem glúten no controle metabólico da diabetes depende dos sintomas da DC apresentados pelo paciente. Na forma clássica, a dieta leva ao melhor controle e redução dos episódios de hipoglicemia, mas nos assintomáticos detectados pela triagem, a influência do tratamento dietético é variável, havendo relatos de melhora no controle metabólico e redução de hipoglicemias, e outros demonstrando pouco ou nenhum efeito. Porém, alguns autores afirmam que a instituição da dieta livre de glúten em pacientes assintomáticos é importante para garantir o crescimento e desenvolvimento puberal adequados.
O que particularmente nos chama a atenção é a questão: pacientes com DC não-tratada têm aumento na incidência ou na progressão das complicações crônicas da diabetes? Infelizmente ainda não encontramos a resposta.
Os autores finalizam o artigo com algumas outras questões.
- “A ocorrência das duas doenças é um fenômeno paralelo com base genética comum?
- Uma doença predispõe a outra? Se for verdade, quem vem primeiro?
- Pode a DM1 ser uma entidade glúten-dependente e passível de prevenção pelo diagnóstico precoce da DC e tratamento com dieta sem glúten?”
E finalizam com as seguintes considerações:
“As evidências atuais apontam para algumas semelhanças no mecanismo patogenético: a etiologia de ambas pode envolver mecanismos genéticos semelhantes que exercerão importante papel no desencadeamento de resposta imune.”
“Ainda há muitas controvérsias em relação à necessidade de implantar triagem de rotina da DC em pacientes com DM1 e que benefícios os pacientes assintomáticos terão com a adesão a um tratamento dietético com restrição do glúten. É preciso ter evidências científicas para que se possa decidir sobre a instituição precoce da dieta sem glúten e os benefícios que essa medida trará para os pacientes assintomáticos.”
“São necessários estudos multicêntricos, em longo prazo, que avaliem a evolução para complicações crônicas da diabetes, repercussões sobre o crescimento, doenças malignas e outras complicações em indivíduos assintomáticos com triagem sorológica e biópsia positivas.”
“À luz do conhecimento atual, pode-se concluir que a triagem rotineira para DC em pacientes portadores de DM1 deve ser realizada e os pacientes com sorologia positiva devem ser submetidos ao estudo histológico da mucosa intestinal. Nos pacientes com sintomas clássicos ou inespecíficos e alterações da mucosa, faz-se necessária a instituição de dieta isenta de glúten, mas, nas formas silenciosa e potencial, ainda não há um consenso sobre os benefícios do tratamento dietético.”
E a nossa consideração final é de que, apesar do grande avanço no conhecimento sobre a diabetes, nos últimos vinte anos, há ainda muito que se compreender sobre a sua etiologia e tratamento. E que diversos estudos atuais apontam para a associação íntima da terapia nutricional e a nutrição com o controle e a prevenção das diferentes formas clínicas da diabetes, como já se relatava na Antiguidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário